Por: Carlos Neves [Historiador] com introdução de Telmo Trindade [jornalista]

São-Tomé, 20 Oct 2020 (STP-Press) –  Todo e qualquer lugar deste imenso e complexo mundo tem uma designação, um nome que orienta para a sua identificação e localização. Não há lugar sem nome e tanto o nome como o próprio lugar  têm a sua razão de ser. Não há efeito sem causa. O homem de hoje pode até estar num determinado espaço, deleitar-se com as suas maravilhas ou então encontrar motivos de desconforto.

As duas faces duma moeda. Mas, tanto um como o outro cenário, não chegam a completar a essência do ser humano, afinal pensante, ávido de respostas para aquilo que logicamente lhe deixa curioso.

Como posso estar num sítio, ser dum sítio, viver num sítio, e não ter informações sobre o mesmo? Tudo tem uma história. Socorrendo-se da agência STP-Press, o historiador Carlos Neves narra esta sobre a cidade de S. Tomé e um dos seus emblemáticos patrimónios.


Contributos para a história da Cidade de S. Tomé e da sua Sé Catedral 

Localizada no quadrante nordeste da ilha de S. Tomé, a cidade de S. Tomé, que tomou o nome da principal ilha do arquipélago do Golfo da Guiné, que se presume ter sido descoberta a 21 de Dezembro de 1470, pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pêro Escobar, começou por ser designada de Povoação pelos seus primeiros moradores. Segunda opção de assentamento populacional no processo de colonização da Ilha, pois a primeira havia sido em Ananbó, ponto de chegada dos navegadores, a Povoação começou a ser edificada em 1499, a mando de Álvaro de Caminha, 2º donatário da capitania de S. Tomé, a volta da baía de Ana de Chaves.

Abrigada dos ventos fortes, esta belíssima baía deve o seu nome a uma senhora cujas origens permanecem um enigma. Num artigo publicado em 1910, refere-se que de acordo com a tradição, Ana de Chaves, donatária das terras de S. Tomé, era “uma senhora de alta estirpe, filha natural de Rei, segundo uma das versões; dama camarista da Rainha, segundo outras versões, e seguindo estas, teria razão nos ciúmes da mesma Rainha o homísio da grande dama nestas paragens, onde a munificência régia lhe concedeu muitas terras, para compensar do degredo”. Ana de Chaves cuja existência na ilha deixou profundos traços, era extremamente caridosa e espalhava o bem, criando e subsidiando diversas instituições religiosas e de caridade. Os seus restos mortais, inicialmente encerrados numa urna de pedra juntamente com os do seu marido, continha a seguinte legenda: “Aqui jaz Ana de Chaves e Gonçalo Gonçalves – Deus os fez e a morte os juntou – Ano de 1566”, foram posteriormente transferidos numa caixa de madeira, da capela de S. João que ao que tudo indica lhe havia pertencido, para debaixo do altar-mor da igreja da Misericórdia (Sé).

Nos primórdios do séc. XVI, refere Valentim Fernandes que a ilha de S. Tomé “tem hua fremosa baya onde esta a povoaçã, onde espalma os navios. E esta ao banda de nordeste esta povoaçã. Esta povoaçã será de 250 casas feytas de madeyra e sobradadas e cubertas de madeyra. E avera outros tãtos moradores pella ylha. No meo desta povoaçã esta a fortalleza onde ho capitã tem seu assento, q he hua torre de pedra e cal de 3 sobrados. E derredor della hua cerca de casarias de muro de pedra e cal q se começou pêra vivere ahy homes per sua vontade.”

Os primitivos moradores da povoação seriam os numerosos degredados que acompanharam Álvaro de Caminha, e os escravos resgatados na costa africana, bem como cerca de 2000 crianças judias, de Castela, que deveriam ser educados de acordo com os ritos católicos. Servida por um bom porto, na rota de três continentes, fornecendo açúcares a Europa e escravos às Américas durante séculos, a cidade de S. Tomé, era também um centro religioso de grande importância, chegando-se a afirmar que “não podemos esquecer que os Papas de Roma e os Reis de Lisboa pensaram em S. Tomé para centro irradiador de religião e cultura para toda a África Austral, e assim dotaram a Capital de tais riquezas e objectos de culto, que S. Tomé se podia chamar “Roma do Ocidente Africano”, como Goa, Roma do Oriente”.

Alicerçando a sua economia na produção de açúcar e no tráfico de escravos, aproveitando a sua localização geográfica para o abastecimento dos navios negreiros, a povoação cresceu rapidamente, atingindo em 1525 uma população de 11 000 vizinhos, o que levou nesse ano, pelos forais de 15 de Março e de 17 de Dezembro se concedessem amplos privilégios e liberdades ao concelho e seus moradores. Por bula de Paulo III, datada de 1534, foi criado o bispado de S. Tomé, com sede na cidade de S. Tomé, que abarcava todas as ilhas do Golfo da Guiné e a costa africana do Congo a Angola.

A respeito da data da elevação de S. Tomé a cidade, existe uma relativa polémica que resulta, provavelmente, de um erro de leitura paleográfica. O Pe. António Brásio, um ilustre Paleografo português que transcreveu e publicou inúmeros documentos da época dos descobrimentos e navegações portuguesas, na sua reputada obra “Monumenta Missionária Africana”, composta por vários volumes editados nos anos cinquenta do século passado, transcreve o seguinte: “Tendo em conta o desenvolvimento da povoação e os serviços prestados a Coroa pelos moradores, confere-lhe os privilégios próprios das cidades do Reino”. Mais adiante no documento em epígrafe pode ler-se: “e por lhe fazer graça e mercê eu de meu próprio moto, çerta çiênçia, poder reall e absoluto, sem eles mo requerere, ne outrem por elles, ey por bem de fazer e por esta faço a dita pouoaçã de Samtomé çidade de Samtomé …”  

O ilustre paleografo, na sua transcrição datou a Carta Régia que estamos a citar, que concede a cidadania a S. Tomé, de 22 de Abril de 1525, sendo para ele, por essa razão, a primeira cidade portuguesa na costa ocidental africana. Porém, existe um manuscrito de princípios do séc. XVIII, da autoria de Manuel do Rosário Pinto, intitulado “ Rellação dos Serenissimos ….”, uma importante fonte da história de S. Tomé e Príncipe, numerosas vezes citado e até plagiado por muitos estudiosos, que data a criação da cidade de S. Tomé de 22 de Abril de 1535.

Só pode ter havido um erro de leitura que importa clarificar. Da análise do texto de Manuel do Rosário Pinto, que não contém uma transcrição do documento original, mas que nos deixa a profunda convicção de que o mesmo terá tido acesso ao original da citada “Carta Régia”, hoje guardada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Chancelaria de D. João III, liv. 10, fl. 124 v.) e a datou de 22 de Abril de 1535. Perante diferentes leituras do que só pode tratar-se do mesmo documento, solicitei uma cópia da referida “Carta Régia”, para poder aferir por que razão o reputado paleógrafo teria feito essa datação. De difícil leitura, por se tratar de um texto do primeiro quartel do séc. XVI, dissiparam-se, para mim, quase por completo, as dúvidas, inclinando-me mais para a hipótese de ter havido um erro de leitura do Pe. António Brásio, pelo que devemos aceitar como mais provável ter sido em 22 de Abril de 1535 a data de elevação de S. Tomé a cidade.

Local de cobiça de outras potências coloniais e de evangelização e difusão religiosa, a cidade de S. Tomé, marginando a bela baía de Ana de Chaves, foi sendo edificada sem nunca se esquecer a necessidade da existência de fortificações e de variadas igrejas, que na sua grande maioria já não existem. De acordo com Teresa Madeira da Silva, “o povoamento inicial era de tipo linear e fazia-se ao longo desse caminho que acompanhava a linha da costa. Esse eixo é o elemento estruturador da cidade e é ao longo dele que se implantam os edifícios institucionais por um amplo terreiro -, posteriormente, a alfândega, a câmara e a cadeia e, mais tarde, a fortaleza de S. Sebastião, para nascente, e a igreja de S. João, para poente mais importantes: a torre do capitão, a Misericórdia e a Sé – ligada a esta. Durante o séc. XVI foi instalado o núcleo de caracter civil e religioso em torno da torre do capitão e da igreja Matriz de N. Sra. da Graça e da igreja e hospital da Misericórdia.”.

Na verdade, só no início da década de oitenta do séc. XIX, se conseguiu drenar o enorme pântano que se achava muito próximo da cidade, conhecido como “alagoa do Junco” e que inundava a povoação, causando enormes prejuízos na época dos grandes temporais, como sucedeu em 1776, altura em que foram destruídas numerosas casas, pontes e ruas. Nessa época, as casas eram quase todas de boa madeira, normalmente com “segundo andar, larguesa e aparato nobre”, assentes sobre pilares de madeira de azeitona, cuja duração é bastante longa. Havia outras de pedra e cal até ao meio e a parte restante de madeira, assim como a própria cobertura. De acordo com uma descrição da época, referia-se que a cidade se situava numa pequena planície com cerca de oitocentos passos de comprimento e duzentos e cinquenta de largura, mas cujos arruamentos não obedeciam a qualquer plano.

Com o passar do tempo e a consolidação do processo de formação da sociedade em S. Tomé e no Príncipe, no séc. XVIII era bastante evidente a tendência da população para se concentrar na cidade de S. Tomé e seus arredores, como se comprova pelos censos populacionais de 1770 e 1777, nos quais se verifica que, em média, 60% da população da ilha de S. Tomé vivia nas freguesias da Sé e Conceição, pertencentes a cidade de S. Tomé. Em 1753, a cidade de S. Tomé que fora durante séculos capital do arquipélago do golfo da Guiné, cedeu esse lugar a cidade de S. António, na ilha do Príncipe, por decreto datado de 29 de Outubro de 1753, com o fundamento de ser essa ilha mais sadia, causando menos mortalidade aos governadores. Essa decisão régia motivou o envio de uma carta da Câmara de S. Tomé manifestando o desagrado dos seus moradores. O direito da cidade de S. Tomé de ser a capital das ilhas portuguesas do Golfo da Guiné, retornaria em 1852. 

Os moradores livres e de posses vestiam-se, habitualmente, à moda da Europa, com roupas de seda, bordadas a ouro e prata, fazendo-se transportar pelas ruas em redes carregadas por dois escravos, ou debaixo de grandes chapéus-de-sol levados a muito custo por um escravo. As mulheres nunca saíam sem serem transportadas em redes, acompanhadas de numerosas escravas que sobre as suas senhoras mantinham um enorme toldo.

Das fortificações construídas, resta ainda em bom estado de conservação, a fortaleza de S. Sebastião (1576) que defendia a entrada na baía, e os restos da fortaleza de S. Jerónimo, muito degradada (1535?). Das igrejas melhor conservadas, podemos assinalar a Sé Catedral, localizada na parte mais nobre da cidade, junto ao Palácio do Governador da colónia, a igreja da Conceição, a igreja de Bom Despacho e a Capela de Bom Jesus.

Segundo o Pe. Francisco Vaz, na sua Obra “San Men Deçu – A Senhora Mãe de Deus, D. João III “suplicou ao Summo Pontifice Clemente VII, q fizesse, e creasse em Sé Cathedral, a Igreja de N. S. da graça da da, Ilha dando-lhe por Dioceze Reyno de Congo, e assim suplicou ao Santíssimo Padre q concedesse o direito de Padroado, e de apresentar ao do, Bispado quando quer q houvesse de ser provido acontecessem nelles, e aos Reys q p tempo forem em os Reynos de Portugal … E tudo assima dito foy concedido pela Sua Santidade …”. De assinalar que antes dessa petição, ainda no reinado de D. Manuel, teve inicio a construção da antiga igreja de N. S. da Graça, actual Sé de Tomé. Presume-se que a Sé teve várias reconstruções, “sendo a primeira por instrução de D. Sebastião, entre 1576 e 1578 e posteriormente em 1814, por iniciativa de alguns moradores da ilha; e mais recentemente em 1956, verificando-se algumas alterações na fachada principal”.  

Na sua descrição da Sé Catedral de S. Tomé, diz o Pe. Vaz, o seguinte: “A igreja é dedicada a N. S. da Graça: tem três naves e seis altares mui pobremente ornados. O 1º é o da Capela-Mor; além da imagem de N. S. tem a de S. Pedro e S. Tomé. O 2º é o de SS. Sacramento; 3º o de N. S. da Avé-Maria antiga Padroeira da Catedral; o 4º é o de N. S. das Dores; o 5º é o de S. Miguel; e o 6º é o de N. S. das Brotas e S. Marçal. Todos estes altares foram antigamente bem dotados, e tinham Padroeiros Administradores de Morgados e Capelas que pelo decurso do tempo se extinguiram por causa das guerras, e outras calamidades.”

Hoje, a cidade de S. Tomé apresenta ainda as linhas fundamentais da sua traça original, que importa preservar e dar a conhecer ao mundo.

BIBLIOGRAFIA

AMBRÓSIO, António, Subsídios para a História de S. Tomé e Príncipe, Livros Horizonte, Lisboa, 1984 

LIMA, José Joaquim Lopes de, Ensaios sobre a Estatística das Possessões Portuguesas no Ultramar

NEVES, Carlos Agostinho das, S. Tomé e Príncipe na 2ª metade do séc. XVIII, Instituto Além-Mar, FCSH – UNL, Lisboa, 1989

SERAFIM, Cristina Seuanes, As ilhas de S. Tomé no séc. XVII, CHAM, FCSH – UNL, Lisboa, 2000

SILVA, Teresa Madeira da, A cidade africana contemporânea de origem portuguesa: São Tomé pré e pós-independência, In: Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 4, no 2, Jul./Dez., p. 175-188

TENREIRO, Francisco, A Ilha de S. Tomé, JIU, Lisboa, 1961

VAZ, Pe. Francisco, San Men Deçu – A Senhora Mãe de Deus em S. Tomé e Príncipe, Edição da Província Portuguesa da Congregação dos Missionários do Coração de Maria, Lisboa

Carlos Agostinho das Neves

         Outubro de 2020

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