Texto: Telmo Trindade ** Foto: António Amaral “InterMamata”
São-Tomé, 06 Out 2020 ( STP-Press ) – O líder da Coligação MDFM-UDD, Carlos Neves admite a hipótese de candidatar-se as eleições presidenciais de 2021 em entrevista exclusiva a STP-Press, na qual, pronunciou-se sobre os poderes do Presidente da República, o sistema Semipresidencial da República, a mudança do regime Único ao Multipartidarismo bem como a relevância da Nacionalização das Roças-30 de Setembro de 1975.
Indo por partes, comecemos pela relevância da Nacionalização das Roças-30 de Setembro cujo 45 º aniversário aconteceu há pouco menos de seis dais com registo de várias actividades em saudação a esta efeméride.
30 Setembro de 1975: uma inegável conquista
A nacionalização das antigas roças coloniais a 30 de Setembro de 1975 em São-Tomé e Príncipe foi uma imprescindível e inegável conquista para os são-tomenses.
Quem assim entende é o historiador e político Carlos Agostinho das Neves. Formado nos finais da década de 70 na Universidade de Lisboa, este quadro são-tomense que também participou em 1974 na chamada associação cívica pró-MLSTP, nesta conserva com a agência STP-Press, sobretudo, por ocasião do quadragésimo quinto aniversário das nacionalizações, tendo começado por um historial sobre as suas motivações políticas.
Carlos Neves – O sangue da política sempre existiu em mim, aliás faço parte duma geração que viveu de perto e no corpo o sistema colonial português. Era quase impossível nós, os da minha geração, ficarmos fora da política. Nos últimos anos do regime colonial português, o sistema reprimia-nos da pior forma possível. Nós que vivíamos no Riboque capital, só podíamos passar pela marginal defronte a actual praça da independência para irmos ao liceu ou ao cinema. Não podíamos passar por exemplo pelo bairro 3 de Fevereiro, então reduto dos portugueses. As nossas relações com o regime português eram péssimas. Tínhamos colegas portugueses, embora muito poucos, com quem convivíamos, mas este convívio apenas acontecia na escola.
– STP-Press – Toda a conjuntura até a data de 12 de Julho de 1975.
-Carlos Neves – O 12 de Julho foi uma etapa resultante dum movimento muito mais amplo que se estendeu décadas antes a todas as antigas colónias portuguesas que se mobilizaram na luta anti-colonial. Os são-tomenses desempenharam um papel muito activo no princípio do século XX com os estudantes que tinham ido a Portugal para se formar e que lá se constituíram em grupos não reivindicando já nessa altua a independência, mas uma autonomia muito mais ampla. Depois dos acontecimentos de 1953, a consciência política dos intelectuais e da população são-tomense tornou-se muito mais aguda e mais exigente em termos de se tornarem autónomos e independentes do regime português, na medida em que já se tinha a percepção de que já não era possível uma convivência pacífica.
– STP-Press – As duas faces da independência: Regime Único e Regime Multipartidário
Carlos Neves- De 1975 para 1991, tivemos um regime de implantação do novo Estado. Era algo que estava a começar, com as dificuldades próprias do momento: falta de quadros, falta de experiência política e até, infelizmente, com o início duma luta política que se tornou exacerbada com prisões e perseguições políticas na medida em que se tinha instalado um regime de partido único e que se tinha revelado ao fim de pouco tempo de difícil solução para o país. Não era isso que os são-tomenses desejavam. Desejavam um país aberto em todos os sentidos, com liberdade de expressão e autonomia para o desenvolvimento de iniciativas económicas e empresariais.
O regime que se tinha instalado a partir de 1975 não deu resposta a essas expectativas, de tal forma que a situação se agudizou em muito pouco tempo. E até finais dos anos 80, vimos que a relação política e social em São-Tomé e Príncipe se tinha tornado quase que gritante. Daí que o regime de partido único na altura se tinha visto na necessidade quase de fazer mudanças. E surgiram as primeiras ideias de transformar o sistema de partido único num sistema pluripartidártio.
Em 1990 faz-se a alteração da Constitituição da República, com permissão de eleições livres e criação de partidos políticos. A primeira etapa da Independência foi uma etapa em que infelizmente não foi possível construir um sistema económico auto-sustentável. Vivíamos essencialmente da exportação do cacau e do café.
STP-Press – Entretanto ocorreria a nacionalização das roças a 30 de Setembro de 1975.
Fazia-se sentir uma independência económica
Carlos Neves – Sim, lá vão 45 anos. Há muita gente que contesta o acto e eu não entendo o porquê da contestação. Só entendo que as nacionalizações eram necessárias, porque não faria sentido independência política sem independência económica, ou pelo menos a libertação do sistema que se tinha criado da dependência das relações de produção que existiam nas roças. Era preciso mudar e só seria mesmo possível com a nacionalização das roças. Não havia outra saída. E muita gente que pretende julgar 30 de Setembro de 1975 à luz do que é hoje o país, fá-lo sem sentido. Não podemos estar a fazer análises do passado com olhos do presente. Houve erros que se cometeram em termos de instalação do novo quadro económico, mas também havia grandes dificuldades em termos de pessoal capacitado, gente para garantir uma boa gestão das empreas,…. e a economia foi caindo.
STP-Press – A justificar o fenómeno êxodo rural?
Carlos Neves – Êxodo rural é um fenómeno normal. A medida em que as pessoas vão conhecendo novas coisas, vão sentindo necessidade de encontrar outras saídas e as roças, a dada a altura, deixaram de ser solução para determinados indivíduos. E começou então a dar-se um fenómeno que até estava estudado, ou seja, uma certa mutação do sistema produtivo. Da agricultura para o comércio, comércio informal desorganizado, de tal forma que temos que conviver com um sistema económico cuja caracterização não é fácil. Nós hoje temos uma economia que se assenta eventualmente nalguns serviços, por exemplo no turismo que infelizmente conhece dificuldades por causa do covid-19, numa agricultura que já não é a mais produtiva, e então vivemos hoje uma situação difícil. O que eu quero dizer é que aquilo que foi feito em 75 em termos de tomada de decisões políticas no âmbito das nacionalizações, não deve se considerar de erro, na medida em que não havia outra saída.
De 75 a 91, houve erros que foram cometidos. As soluções não foram aparecendo das melhores e em 91 o regime mudou. Passamos para um regime pluripartidário, com vários partidos e eleições livres. De 91 em diante, os primeiros anos foram marcados por uma tentativa de implantação do sistema democrático. Não estávamos habituados a isso, era preciso criar no espírito das pessoas de que tínhamos passado para um outro regime com Governos eleitos. Fizemos uma Constituição semi-presidencialista cuja convivência implica que os actores políticios tenham uma noção clara das respectivas zonas de intervenção e não queiram criar problemas institucionais muitas vezes desnecessários, numa luta pelo Poder ou por influência na tomada de decisões e então temos tido alguns sobressaltos. Mas nada que seja muito diferente doutras paragens do mundo. Infelizmente o nosso regime pode ter exagerado um pouco em termos de quedas de Governo o que nem sempre propicia estabilidade nem facilita tomada de decisões, mas isso faz parte do processo e a avaliação que hoje faço é que pelo menos algo foi conquistado: O ideal da liberdade, um sistema que é feito de mudanças através de eleições, ….e as eleições não sendo um fim em si mesmo, elas podem servir pelo menos para corrigir erros quando uma governação não é das melhores aos olhos do povo.
É a avaliação que faço, embora reconhecendo a necessidade de introduzirmos melhorias no nosso sistema político-institucional. Faço uma avaliação positiva dos 45 anos da independência de São-Tomé e Príncipe. Costumo dizer que houve duas grandes conquistas que o povo são-tomense fez. A primeira, sem dúvida, a independência política no dia 12 de Julho de 1975 com reconhecimento internacional e direito a palavra nas Nações-Unidas, bem como liberdade de negociarmos e discutirmos os nossos próprios interesses.
A outra grande conquista é a democracia a partir de 1991 quando fizemos a Mudança, criamos um quadro democrático com eleições livres, liberdade de expressão embora com altos e baixos mas com o sistema a funcionar. As pessoas têm a liberdade falar, exprimir aquilo que pensam, de criticar ainda mais com o surgimento das redes sociais e nesse caso até com certos exageros e falta de responsabilização.
A constituição semipresidencialista é boa
STP-Press – Que comentários faria do papel do Presidente da República enquanto Chefe do Estado?
Carlos Neves- Quando se analisa a Constituição são-tomense, acho que a Constituição semi-presidencialista que temos é boa. O que a torna muitas vezes problemática é o entendimento que alguns dirigentes tentam fazer da sua interpretação, ora se achando com poderes para além do plasmado, com muitas interferências, choques, incompreensões e muitas vezes com pouco diálogo, o que dificulta as coisas. A Constituição está concebida de tal forma que tem que haver uma inter-dependência entre os poderes. Os poderes não estão aí para se opôr. Existem para estarem em conjugação de esforços no sentido de conseguirem conquistas para a população. Senão, não fariam sentido. E este quadro de separação de poderes que nós escolhemos é para permitir o controlo dos mesmos e não para o abuso ou usurpação de poderes. Tem que haver intermediação e diálogo permanente entre os diferentes órgãos dentro dos limites claramente definidos pela Constituição. Se as pessoas tiverem um entendimento claro daquilo que reza a Constituição, funciona. Nós não somos o único país do mundo com regime semi-presidencialista. Há vários outros países. E falando dos poderes do Presidente são-tomense, diria que o Chefe de Estado aparentemente tem poucos poderes, mas no fundo muitos poderes. O que acontece é que alguns dos seus poderes são extremos.
Por exemplo, o Presidente dentro de certos condicionalismos pode demitir Governos e dissolver a Assembleia. Houve uma limitação em 2003, na revisão da Constituição, que fixa que para haver dissolução tem que haver parecer favorável do Conselho de Estado, mas isso não deixa de ser um poder do Presidente. São grandes poderes, aquilo que poderíamos chamar de bomba atómica do Presidente da República.
Porém, esses poderes podem não ser necessários, senão em casos de grave crise institucional. Felizmente não temos tido isso. Vivemos situações de quedas de Governos e de dissolução da Assembleia que talvez pudessem ser evitadas ou resolvidas doutra forma porque cada queda de Governo cria instabilidade, e a expectativa da população e dos investidores diminui por perda de confiança.
Na economia, costuma-se dizer que sem confiança ela não avança. Nenhum investidor coloca o seu dinheiro num país ou num cenário que não lhe oferece confiança. Por outro lado, na minha opinião, o Presidente da República também tem outros poderes que extravasam o que está na Constituição: os poderes de influência. No meu entendimento, o Presidente da República deve acompanhar o desenvolvimento do país em toda a sua dimensão e exercer o seu poder de influência junto dos Governos ou da sua sociedade civil. Deve ter esse papel de chamar, dialogar, estabelecer pontes. São poderes que não estão na Constituição, mas que o Presidente deve exercer para garantir que o país funcione de forma regular e que possa resultar na melhoria de vida da população.
SP-Press – Em nome do entendimento e da necessária estabilidade política e social no país, que perfil para um futuro Presidente já que se avizinham eleições presidenciais?
Carlos Neves – Considerando o que já se passou nos últimos trinta anos, diria que é preciso que o Presidente da República tenha essa capacidade de estabelecer pontes e unir os são-tomenses que neste momento estão muito divididos. Dialogar, estabelecer pactos, ajudar a encontrar as melhores soluções para o país, ajudar os Governos a governar. Porque se não for assim, se houver guerras permanentes entre Presidente e Governo, quem sofre é a população porque o país não se desenvolve. É este o perfil, em sentido lato, que o Presidente da República deve ter: capacidade de diálogo, de estabelecer pontes e de influenciar de forma construtiva. Não se apegar naqueles poderes que estão fixados na Constituição como demitir Governos. Ele deve ajudar os Governos a governar.
Presidenciais-2021: não descarto a possibilidade
STP-Press – Já agora. Propala-se que o senhor pretende concorrer às presidenciais de 2021….
Carlos Neves – É verdade que se tem falado no meu nome. Bem, é uma possibilidade que eu não descarto, embora não tenha tomado ainda uma decisão sobre essa matéria. Entendo que antes de avançar para uma aventura dessa envergadura, preciso assegurar-me se tenho bases políticas de apoio e se sou minimamente aceite pela população.
STP-Press – Para terminar, os cargos políticos que já exerceu?
Carlos Neves – Fui um dos fundadores do partido Acção Democrática Independente (ADI) do qual fui Secretário-geral durante vários anos e ajudei depois a constituir o partido UDD. Nos últimos dois anos, constituímos uma união mais profunda entre UDD e MDFM. Fizemos um congresso do qual resultou a união e concorremos a eleições legislativas em 2018. Hoje fazemos parte da coligação do Governo com o MLSTP-PSD. Fui também Deputado desde a primeira legislatura, Embaixador em Portugal, Espanha, Estados-Unidos da América e Nações-Unidas. Neste momento, sou membro do Conselho de Estado.
Fim /TT